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2 de setembro de 2016

Kobutori’jii San, um velho taikomochi

Bacana mesmo era Kobutori’jii San, o velho taikomochi com um estranho calombo na testa. Ele vivia de dançar e tocar tambor, inventar estratégias de guerra e até mesmo dar conselhos de amor para os antigos senhores feudais. Kobutori’jii San era especialmente sábio e divertido.
Uma vez, noite clara, voltando para casa muito cansado, o velho avistou um templo no topo de uma montanha e para lá subiu em busca de um refúgio para descansar. O’jii San encontrou um santuário arruinado, com as tábuas rangendo soltas e avencas brotando pelos vãos do assoalho. O velho fez o que podia fazer e sabiamente improvisou uma cama para dormir.
Kobutori’jii San ferrou no sono — mas acordou logo após a meia-noite, ouvindo o barulho de dororon dorodon dararen-dengon e o rumor de cantoria e risos ao longe. O’jii San espiou por uma fresta. Lá fora, bolas de fogo surgiram entre as árvores e uma turba de sombras agitadas vinha se aproximando. Eram os tambores que batiam dororon dorodon, enquanto o templo inteiro tremia e balançava dareren-dengon. Vinha lá alguma festa e o taikomochi sabia que o ritmo era dos bons. Kobutori’jii San ’tava se animando, quando viu um oni, dois onis, três onis, uma dezena de demônios dançando muito bêbados aos pulos e saltos.
O velho fez o que podia fazer e cautelosamente encolheu-se, esperando que sua pessoa não fosse percebida por aquele bando. Era tanto oni reunido, até seria impossível algum deles não sentir cheiro de um humano escondido. Lá fora, os demônios bebiam sake, estalavam nozes, castanhas e avelãs na boca risonha. A percussão ribombava sem trégua. Kobutori’jii San sentia a alegria com os ouvidos. E também com o estômago, o coração... e as pernas e os braços. Todo ele era só vontade de dançar.
Os onis cantavam...

Kurumiwa pappaba kuzuku
O-sanagi yatsu no o-aka aká
Tchararu tsutenga
Ippoko nippoko sanbokko yonboko


O’jii San, esquecendo o medo, saiu para a roda. Naquele momento — exato, quando os onis cantavam um! dois! três! O velho aproveitou a deixa e gritou — quatro!
... yonboko!
Os onis arregalaram os olhos, porém mal tiveram tempo pra pensar: quem é esse taikomochi com calombo na testa, porque Kobutori’jii San mandava muitíssimo bem e já começava a puxar a fila para brincar de roda em volta do templo. Por toda a madrugada, o velho fez o que sabia fazer e divertidamente dançou e cantou, comeu e bebeu, contou piadas de tolos, fantasmas e outros velhos bacanas também. Todos aplaudiam Kobutori’jii San com seus trejeitos e artimanhas, pois era isso o que ele era: um homem bastante sábio e vivido. Antes de clarear o dia, porém, os onis o cercaram.
— Você é um ótimo camarada! Poderá voltar quando fizermos a próxima festa e, para você realmente vir, ficaremos com isto em sinal de penhora.
Isto era o calombo de Kobutori’jii San! Os demônios imaginavam que fosse um chifre ainda que meio chinfrim que nascia na testa do velho. Para qualquer monstro não existe nada mais valioso que um chifre... Um, dois ou três chifres sempre diz muita coisa a respeito de quem os possui! E, tirando o calombo do taikomochi, sumiram todos.

* * *

O velho sem o calombo na testa cabriolou de volta para a casa e alegre contou dororon dorodon a história dararen-dengon para sua velha. Ela pegava cada detalhe, balançava as mãozinhas e ria com as cenas que O’jii San descrevia. E aconteceu que um vizinho ouviu a conversa, contudo ouviu de um jeito meio torto e, coçando um calombo na testa que há muito tempo o incomodava também, partiu em busca de uma montanha arruinada com avencas rangendo no topo de um templo com o telhado brotando dos vãos... Esse velho era realmente atrapalhado!
No meio daquela noite, nada aconteceu. Nem na noite seguinte. Nem na terceira. Ninguém sabe quanto tempo o vizinho ficou esperando pelos onis... Quando finalmente ouviu dororon dorodon, o velho mal humorado se apresentou. Porém, ele tinha medo daqueles foliões e mais tremia do que dançava! Não entendia o ritmo dos tambores, não pegava nem no tranco... Os demônios ficaram entediados com aquele velho. Ele só sabia reclamar e se cansava facilmente da alegria do bando. O fogaréu ‘tava aceso no alto da montanha. O velho achava tudo demais, abriu um leque para se abanar. Os onis começaram a caçoar...
— Número novo? Você vai imitar uma geisha?
O homem ainda tentou agradar a plateia. Porém, como tudo o que já havia feito na vida, nada prestou.
— De fato, você não anda nos seus melhores momentos! — avaliaram os demônios. — Os homens têm um comportamento estranho, não conseguem ser sempre os mesmos, nem felizes. Para poupá-lo de mais problemas, entregamos a você o que tiramos de Kobutori’jii San.
Assim disseram e colocaram outro calombo na cabeça do velho invejoso. Os dez onis em cima da montanha foram embora e, desde então, cresceram dois tocos de chifre na testa do meu vizinho!


* Peter O’Sagae. Onze velhos bacanas e outros contos do Japão (2007).

10 de agosto de 2016

Hyottoko da boca torta

Um velho e sua esposa moravam em uma cabana distante. Ele era lenhador e, todas as manhãs, subia a montanha para trabalhar. Porém a velha era amiga da preguiça e jamais saía de casa, passava o dia inteiro virada do avesso. Ah, se ela fosse lavar roupas no rio como as boas velhas das antigas lendas costumavam fazer, talvez visse algo diferente ou tirasse a sorte de encontrar um pêssego, ou um melão, descendo pela correnteza. Mas, não!
A sorte estava mesmo do lado do velho.
Certa vez, enquanto ele cortava lenha, ouviu uma voz ao longe que pedia — Dê-me lenha, lenhador! Era uma voz rouca, fraquinha, quase um assovio no meio das árvores. — Dê-me lenha, lenhador! O homem saiu procurando — Dê-me lenha, lenhador! E descobriu que o gemido vinha de um buraco no chão. O velho colocou um pedaço de lenha na boca do buraco e — vupt, a lenha desapareceu. Curioso para entender o que se passava, o lenhador abaixou-se para espiar e — vupt, também desapareceu.
Lá embaixo tava um calor danado, tudo ardia e ofuscava a vista. O velho logo compreendeu ter chegado ao santuário do deus do fogo. Ho-Musubi disse assim:
— Obrigado, pela madeira que me alimenta. Em troca, receba este pacote.
E o velho voltou para casa.

* * * 

A mulher preguiçosa logo esticou as mãos. Dentro do pacote, encontram apenas um bebê com a careta assanhada. O velho sorriu, a velha torceu o nariz. Que incomodo aquele traste de gente! Contudo o lenhador quis acolher o menino como um filho e deu-lhe o nome de Hyottoko.
Inquieto, Hyottoko passava horas mexendo no próprio umbigo. Fazia bico com a boca e soprava, soprava e ficava a cada dia mais com a boca torta. O pai pedia e às vezes ralhava para ele parar de brincar com o umbigo, porém Hyottoko não parava. E mexia e soprava, mexia e soprava até que o umbigo inchou e ficou vermelho como uma brasa acesa. A velha fez pouco caso. O velho bateu de leve com o cachimbo no umbigo do menino. Então, caiu uma moeda de ouro. O velho bateu outra vez e caiu outra moeda. Aí a velha se interessou...
Todas as manhãs, o lenhador passou a bater três vezes no umbigo do filho, entretanto, sempre satisfeito, continuava indo trabalhar. Um dia, ele longe, a velha preguiçosa em casa... Pegou um cachimbo bem grande e foi atrás do menino. “Agora ou nunca eu pego você e vai chover muitas moedas de ouro!” Hyottoko correu, correu e desatinado pulou dentro da boca do forno e — sumiu.
Quando o velho voltou e não encontrou mais o filho em casa, ficou muito triste. Fez uma máscara igual à careta do menino para colocar na pilastra atrás do forno... E hoje, para ter boa sorte, muita gente pendura perto do fogão uma máscara que lembra o Hyottoko da boca torta.


* Peter O’Sagae. Onze velhos bacanas e outros contos do Japão (2007).

28 de julho de 2016

A velha que sabia demais


Há muito tempo, vivia uma velha faceira em um vilarejo próximo ao mar. Ela muito se orgulhava por não deixar nenhuma pergunta sem resposta e as pessoas se acostumaram em acreditar que ela realmente soubesse de todas as coisas que existiam no mundo. E, ouça você — um dia, as ondas do mar trouxeram uma grande chaleira de cobre e os pescadores, que nunca haviam visto nada igual, correram para chamar a velha sabida.
— Obá, pra quê serve isso? — alguém perguntou.
— Cê não sabe? É um capacete usado pelos guerreiros na hora da batalha.

Outro pescador, segurando a alça da chaleira, então perguntou:
— E isso, Obá, pra quê serve?
— Veja bem — gesticulou a velha. — Isso vai debaixo do queixo para segurar o capacete.

Outro homem do vilarejo, apontando o bico da chaleira, perguntou:
— E isso pra quê serve, Obá?
— Isso aí eu digo, é uma espécie de estetoscópio. Sabe o que é?
Nenhum dos pescadores sabia, mas gostavam quando a velha falava uma palavra difícil. Ela sorriu e explicou:
— Quando o guerreiro põe o capacete, ele não pode ouvir quase nada... Por isso, inventaram esse tipo de extensor de ouvido.

— E por que não tem um para cada orelha?
— Vocês são muito bobos — suspirou pacientemente a velha faceira e orgulhosa. — Se fossem dois bicos, um de cada lado, os guerreiros não iam conseguir deitar com a cabeça no travesseiro! Apenas um é suficiente para ouvir.

Os pobres pescadores tinham de reconhecer: ninguém mais dava respostas tão boas quanto a velha Obá...



* Peter O’Sagae. Onze velhos bacanas e outros contos do Japão (2007).