26 de setembro de 2016

3. Aase in memorian


 

Não sei até hoje,
o que pode ter acontecido.

Eu estava decidido
a ter uma simples cabana
como meu palácio,
o seu reino de sonhos, Solveig.

Acho que um vento, o Curvo,
o levou para longe de mim
esquecendo somente palavras
jogadas à porta.

Eu respirava o ar sem veneno,
alegre por recomeçar ou finalmente
entrar para vida real fincando os pés
no chão.
Mas vieram os fantasmas,
jovens que riam, mulheres
vestidas de verde,
rostos
conhecidos e sem nome.

Ainda era dia
e você
reclamava da falta de luz.

Tudo escureceu em meus olhos,
meu coração carregava muito peso,
o peso dos erros, os erros do passado.

Ainda era dia
e você voltava para casa.
Mas... não entrou, ficou
parado do lado de fora
e pediu que eu esperasse


O tempo que for necessário         
...esperarei - respondi.
E vi seu vulto, seguindo o vento
descendo o mundo.

Perdido em silêncio,
senti a falta do colo da Velha
e, mesmo proibido, apertei os passos
em direção ao vilarejo.
Fui entrando em casa.

A noite se ergueu
pedindo que eu acendesse
o fogo.

Na lareira, uma lasca de brasa
defendia-se contra a escuridão.
Depois que as autoridades mandaram
buscar nossos bens, quase nada restou
além de meu velho berço. Ali,
Aase dormia.
Sua única companhia era um gato velho
e fiel. O assoalho rangeu, e ela acordou
um sorriso murcho nos lábios.

Como está, minha mãe? Tem sede?

Esperei.

Vou cobrir seus pés.

Neste gesto, fui lembrando, quando criança,
as brincadeiras inventadas debaixo daquela coberta
às vezes tenda, às vezes carroça, e eu corria
ao encontro de aventuras em países distantes.
Aase participava em algumas viagens:
colocava o bichano à frente do berço
feito um corcel veloz.
E sentada, em sua cadeira, como cocheiro,
a velha olhava para trás, perguntando
se tudo estava bem ou se eu sentia frio!
Essas lembranças foram ganhando vida,
formas e cores, enchendo o pequeno aposento
de paisagens e alegria.

Mas, desta vez, eu seria seu cocheiro...

Mamãe pediu para que eu fosse
com cautela, estava exausta com dores
e tinha um pouco de medo. Expliquei que
a pior parte do caminho
já havíamos passado.
Aase insistiu em seu medo, o vento
parecia-lhe mais frio e via uma estranha luz.
Para mim, eram os pinheiros que uivavam
e as janelas do castelo de Soria-Moria.

Lá longe, acontecia um baile
e o porteiro não era outro, senão São Pedro
recebendo a todos muito gentil
com um copo de vinho na mão...
A velha perguntou pelos doces.
Sim, haviam muitos, de boa aparência 
preparados pela finada esposa 
de nosso antigo pastor.
Aase ficou satisfeita, pois poderia 
colocar as conversas em dia...
Há tempos não falava com a comadre!
Mas estava cansada, sem poder
suportar o resto do percurso.

Fique tranquila, minha mãe,
estarei sempre aqui. Feche seus olhos!

Olhando para as estrelas,
única luz para os viajantes,
rezei pedindo proteção...

Caí de joelhos, iria rezar
mas acabei brigando com Deus,
ordenando-lhe que abrisse
as portas do Céu para a Velha.

E a noite
se fez madrugada,
e a madrugada,
outro dia.
Você não voltou...

Peer, em que lonjuras
do mundo, você
agora se encontra?



* Peter O’Sagae. Peer Gynt – 3. Aase, in memorian.
Do roteiro original inspirado na música de Edvard Grieg para a peça de Henrik Ibsen. Versos incidentais de Oswald de Andrade. Rádio USP FM, 1996. Noites poéticas, 1997.

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