Não sei até hoje,
o que pode ter acontecido.
Eu estava decidido
a ter uma simples cabana
como meu palácio,
o seu reino de sonhos, Solveig.
Acho que um vento, o Curvo,
o levou para longe de mim
esquecendo somente palavras
jogadas à porta.
Eu respirava o ar
sem veneno,
alegre por recomeçar ou finalmente
entrar para vida real fincando os pés
no chão.
Mas vieram os fantasmas,
jovens que riam, mulheres
vestidas de verde,
rostos
conhecidos e sem nome.
Ainda era dia
e você
reclamava da falta de luz.
Tudo escureceu em meus olhos,
meu coração carregava muito peso,
o peso dos erros, os erros do passado.
Ainda era dia
e você voltava para casa.
Mas... não entrou, ficou
parado do lado de fora
e pediu que eu esperasse
O tempo que for necessário
...esperarei - respondi.
E vi seu vulto, seguindo o vento
descendo o mundo.
Perdido em silêncio,
senti a falta do colo
da Velha
e, mesmo proibido,
apertei os passos
em direção ao vilarejo.
Fui entrando em casa.
A noite se ergueu
pedindo que eu acendesse
o fogo.
Na lareira, uma lasca de brasa
defendia-se contra a escuridão.
Depois que as autoridades mandaram
buscar nossos bens, quase nada restou
além de meu velho berço. Ali,
Aase dormia.
Sua única companhia era um gato velho
e fiel. O assoalho rangeu, e ela acordou
um sorriso murcho nos lábios.
Como está, minha mãe? Tem sede?
Esperei.
Vou cobrir seus pés.
Neste gesto, fui
lembrando, quando criança,
as brincadeiras inventadas
debaixo daquela coberta
às vezes tenda, às
vezes carroça, e eu corria
ao encontro de
aventuras em países distantes.
Aase participava em
algumas viagens:
colocava o bichano à
frente do berço
feito um corcel veloz.
E sentada, em sua
cadeira, como cocheiro,
a velha olhava para
trás, perguntando
se tudo estava bem ou
se eu sentia frio!
Essas lembranças foram
ganhando vida,
formas e cores,
enchendo o pequeno aposento
de paisagens e alegria.
Mas, desta vez, eu
seria seu cocheiro...
Mamãe pediu para que eu fosse
com cautela, estava exausta com dores
e tinha um pouco de medo. Expliquei que
a pior parte do caminho
já havíamos passado.
Aase insistiu em seu medo, o vento
parecia-lhe mais frio e via uma estranha luz.
Para mim, eram os pinheiros que uivavam
e as janelas do castelo de Soria-Moria.
Lá longe, acontecia um baile
e o porteiro não era outro, senão São Pedro
recebendo a todos muito gentil
com um copo de vinho na mão...
A velha perguntou pelos doces.
Sim, haviam muitos, de boa aparência
preparados pela finada esposa
de nosso antigo pastor.
preparados pela finada esposa
de nosso antigo pastor.
Aase ficou satisfeita, pois poderia
colocar as conversas em dia...
colocar as conversas em dia...
Há tempos não falava com a comadre!
Mas estava cansada, sem poder
suportar o resto do percurso.
Fique tranquila, minha mãe,
estarei sempre aqui. Feche seus olhos!
Olhando para as estrelas,
única luz para os viajantes,
rezei pedindo proteção...
Caí de joelhos, iria
rezar
mas acabei brigando com
Deus,
ordenando-lhe que
abrisse
as portas do Céu para a
Velha.
E a noite
se fez madrugada,
e a madrugada,
outro dia.
Você não voltou...
Peer, em que lonjuras
do mundo, você
agora se encontra?
* Peter O’Sagae. Peer Gynt – 3. Aase, in memorian.
Do roteiro original inspirado na música de Edvard Grieg para a peça de Henrik Ibsen. Versos incidentais de Oswald de Andrade. Rádio USP FM, 1996. Noites poéticas, 1997.
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