17 de novembro de 2005

Linha a linha, Yolanda entrelaça

De sua voz, a janela fora aberta ao toque. Eu ainda estava à beira do texto quando me sobressaltei num espanto. Jamais havia experimentado a vertigem de quem vai e deixa-se inesperadamente arremessar a novos espaços, sempre incertos e tão extensos: que assim fosse, do papel passei olhos para a paisagem que começava a elevar-se por entre letras e intervalos brancos. Desgarrei-me do livro e mirei atenção naquele vazio das coisas que ela contava e preenchia.
Houve um tempo, escutei apenas, em que minha janela se abria... E um chalé despontou diante e mal clareado. No alto do teto, um ovo azul, de louça e grande, num equilíbrio de vidro e quase todo se quebrar. Pois era então sobre o ovo bem arranjado que um costumeiro pombo branco vinha pousar. Desejei pensar perguntas de menino descrente, mas Yolanda linha a linha seguia.
Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar.
Eu era criança, e achei essa ilusão maravilhosa.
Recordo como se um pintor de assombramentos pudesse achegar-se novamente dos bancos escolares trazendo à nitidez do dia um sopro de fantasia. Afinal, quem não fora criança ou escaparia por alguma janela de sua antiga sala de aula, sem atinar que, de quando em vez, pudesse voltar? Ou logo fizesse igualar céu e ovo de louça tão facilmente para a alegria de ver o invisível pouso de pássaro no tempo? Certo é que naquele tempo não podia filosofar. Da admiração, resultou uma sorte estranha de sumiço. Já não podia sentir-me completamente feliz como Cecília acabara de confessar: Yolanda seguia e, alheio, fiquei sem acompanhar o que deveria emergir através do segundo parágrafo. Realmente perdi partes do texto, durante anos, ao troca palavras por uma imagem única. 


Yolanda lia textos com grande intimidade. E os alunos notavam. Professoras, até então, outras eram e apareceram no intuito de ditar frases sem música, sem sombra, sem pensamentos. Ora, os textos têm pois um andamento lá escondido, quase secreto. No entanto havia mais de seis anos, a escola só sabia ensinar e repetir tal qual cada ponto final soando um solavanco. Ai de nós, na vista temida de Teresa Brava, não déssemos aquela entonação que fatalmente derrapava em uma pergunta. Ou a exclamação, dias longe, que aprendêramos exagerar com alguma devoção dissonante, mas nunca exclamou Cristina Marcha Lenta. Sem dar por nós, dormíamos sem dar atenção a essa ou aquela professora. Então, ...
Linha a linha, Yolanda fazia de todo texto tecido contrário, rico em detalhes. Que saltasse uma vírgula aqui outra ali, talvez fosse, na função de fazer falar o texto. Contava com estilo, quem ensinou, tanto confundia sua voz na voz do autor. E alterava compassos, e ainda lembro hoje e ouço bem as pausas. Dava justiça ao tempo entre as palavras, como se pudesse separá-las com a mão sem desenredar a história.


Houve uma vez em que a janela de nossas leituras se abriu para um intacto mulungu coberto de arribações nos ramos da literatura de Graciliano. Deixando atrás a porteira do título, sobre-andávamos o chão seco do texto na cata de alguma palavra mais familiar, e nada vinha. Yolanda, Yolanda não tresvariava, colhia impressões da dificuldade entre os alunos, provavelmente o sertão ia pegar fogo. Quando a árvore se descobriu por nós, demos que ali plantada arrancharia bandos de penas e bicos. Mulungu cobriu-se de imagem...
— Essas excomungadas levam o resto da água: querem é matar nosso gado!
Sinha Vitória falaria assim e imediatamente franzi a testa. Porque desfeito e refeito em cerzidos ziguezagues da leitura com Yolanda, o texto duplicou adentro seu espaço para aconchegar o leitor na áspera beleza de suas frases. No entanto, a evidência de céu limpo tolhia-me os olhos naquela claridade de mau agouro. Cabisbaixei e vi apenas correr a sombra das arribações na face tosca da terra. Espieios quatro cantos, uns minutos voltado para o norte, coçando o queixo.
Como era que Yolanda tinha dito? O feito dela tornava ao espírito de Fabiano que éramos e logo a significação aparecia. Matutando, a gente via que a leitura era assim, mesmo que o texto nos largasse tiradas embaraçosas. Percebi o que ela queria dizer, ri, encantado com a aprendizagem. Àquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores, uma garrancharia pelada, enfeitava-se de penas.


Porque é preciso aprender a olhar, a professora da professora abriu uma janela para ela com a vertigem do texto próprio de Guimarães. Eram lições de Dona Nilce com a palavra côncava de sentimentos e estilo. E procurei eu mesmo, partindo do Urubuquaquá até o Pinhém, a entremanhã rendada linha a linha que Yolanda leu, lia, anos antes. Motivo que leitura não se faz por procuração, fosse a vida em idêntico rumo, onde se esconde não logro, logo suspeito um trecho do recanto limpo e fundo, entre desbarrancados, tão sumido que parecia a gente estar vendo ali em sonho.


Tão essenciais, as pausas de Yolanda, e surpreendentes, quanto espontâneas. Emprestavam o tom inesperado às frases boas ou banais, expunham fácil o intricado palavra a palavra. E bem lembro e as pausas ouço ainda, a voz nunca sem qualquer quê extravagante. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas. Oscilava pouco o corpo, durante a leitura. Vezes eu via: ela pegava um pássaro invisível entre o polegar e o dedo indicador, os três demais abertos em asa. Marcava a cadência no desenho de um oito pelo ar, enumerava os compassos em dois pequenos saltos breves e imaginários. E muito só.
Nossas aulas eram na parte da manhã, o que não impedia o tempo de toldar-se outro. À luz rara de um candeeiro, líamos um conto machadiano. Contava eu treze anos, e então me inteirava hóspede na casa assobradada de certo escrivão na cidade do Rio de Janeiro de uma antiga noite de Natal.
Logo, vi assomar à porta do texto o vulto de Yolanda.
Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo.
Assim era ela. Quando em quando, Yolanda deitava olhos uma entrelinha fora do conto para adivinhar a reação dos alunos. Creio que deu por mim embebido na sua pessoa. Ela talvez soubesse, noutras leituras, que acabava uma narração ou uma explicação, eu inventava uma pergunta só para ouvir-lhe a palavra. Discreta, seguia o fluxo do conto. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto...


            Yolanda entrelaçou significados para toda minha vida. Calma, ela seguia o texto... irrompi à janela aberta por sobre um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Ao desmanchar a primeira imagem, contornei a palavra arabesco nos seus volteios de rabiscos, rama e aragem. Daí que a literatura à leitura da voz começava soar eterno esboço, o texto recompondo-se linha a linha as garatujas de outra qualidade e bem-querer.




* 1º lugar no IV Concurso Leia Comigo! FNLIJ 2005 - categoria Ficção.

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